Quando eu quiser falar com Deus

Date:23 jun., 2015

Quando você quiser falar com Deus

A vontade de ter esse contato mais íntimo com Deus pode acontecer a qualquer momento, especialmente quando estamos em solidão.

 

 

Por Liane Alves

 

Existe um tempo em que o coração pede insistentemente por essa conversa. A vida, com suas tristezas e alegrias, pequenos prazeres e sonhos nos parece insuficiente. Algo nos falta. Nós precisamos, então, aprender a atingir um ponto interno mais profundo para, talvez, poder experimentar um maravilhamento que não pertence a uma existência comum. Mas como nos preparar para esse encontro diário que pode anteceder nossa viagem espiritual?

 

Nas primeiras páginas do Gênesis é dito que Deus vinha se encontrar com Adão todas as tardes no Jardim do Paraíso. “Adão, onde estás? Estou te procurando”, perguntava Ele. Portanto, eles eram bons amigos e confidentes que se encontravam a mesma hora e lugar apenas para conversar. Infelizmente, nós esquecemos que podemos recuperar essa intimidade cheia de paz, amor e cumplicidade a qualquer momento.

 

Se Deus nos procura, nós também procuramos por Ele. O mestre indiano Ramana Maharshi, por exemplo, tinha o hábito de rezar para uma montanha chamada Anurachala, que para ele era uma preciosa encarnação do deus Shiva. Ramakrishna, outro mestre da Índia, entoava cânticos e poemas para “O Deus com Forma”, e mantinha diálogos pessoais com Ele. Os praticantes budistas cantam sob a forma de prece as palavras do Sutra do Coração, o mais profundo ensinamento de Buda, mesmo que dentro do budismo não exista o conceito de Deus. Muçulmanos rezam cinco vezes por dia para Alá. De diferentes maneiras e com com diversos propósitos, orar é sempre manter uma relação com algo que transcede a nós mesmos.

 

E​ existem dezenas de tipos de oração que nos colocam de novo em contato com um plano divino. Preces podem ser feitas em silêncio, com palavras, incluindo o corpo, com rosários, gestos ou posturas ou repetições de frases. “Algumas pessoas que creem em Deus não tem o hábito de rezar. Elas acreditam que a oração tem muito poder mas, por diversas causas, não a fazem com frequência. Não percebem que é através da oração pessoal que se cultiva uma bela amizade com o Todo-Poderoso. Um contato íntimo, diário, é fundamental, nem que seja por poucos minutos” diz Pedro Siqueira, autor do livro Você pode falar com Deus, um jovem advogado que consegue reunir mais de dez mil pessoas em reuniões especiais para rezar o rosário​ no Rio de Janeiro, Brasil.

 

A oração modifica o pensamento. Nós vivemos numa época em que acreditamos que podemos  resolver todos nossos problemas apenas pensando sobre eles. E isso é falso.  Nós nos esquecemos que uma mente que reza e medita tem uma outra visão do mundo, mais clara, ampla e precisa. É como se a oração limpasse nosso modo habitual de pensar, e deixasse a mente mais pura e cristalina, com uma maior capacidade de visão e de compreensão.

 

E nós podemos rezar não só para nós mesmos, mas também pelo outros. Guilherme de Paure, que conviveu com São Domingos por doze anos na região do Languedoc, na França, dizia que aquilo que mais tocava a ele naquele santo homem era o desejo dele de interceder pelos outros. “Nunca vi um homem para a qual a oração fosse tão habitual e um ser humano que tivesse uma tão grande abundância de lágrimas. Quando ele estava rezando, soltava gritos que se ouviam ao longe. E ele dizia a Deus: ‘Senhor, tenha piedade de todos aqueles que vão tornar-se pecadores!’ Assim ele passava aos noites em claro, gemendo e chorando pelos pecados dos outros”. Segundo a tradição cristã, pedir pela salvação, saúde, paz e felicidade dos outros é a oração que mais agrada a Deus, porque essa maneira de rezar inunda nosso coração de compaixão e bondade amorosa.       

 

Porém, existem muitos jeitos diferentes de orar e se encontrar com Deus. Cada pessoa pode escolher qual o jeito que fala mais de perto ao seu coração. Vamos falar aqui de alguns deles.

 

Escuta Pessoal

Todos os dias, às quatro horas da manhã, bem no início de sua jornada de trabalho, os monges cistercienses reservam um tempo especial para a oração de escuta pessoal, talvez o tipo mais natural e espontâneo de oração. Essa forma de rezar é apenas uma conversa franca com Deus. Os monges falam com Deus Pai sem censura, interiormente, mas com muita confiança de que estão sendo escutados e compreendidos. Em casa, esse diálogo pode ser feito com nossas próprias palavras, da maneira mais simples possível. Nós podemos desabafar e contar para Ele o que mais nos machuca o nosso coração naquele momento, ou fazer comentários sobre algo que aconteceu  e que nos tocou, ou ainda pedir o que gostaríamos que acontecesse em nossas vidas. Para ouvir a resposta, é preciso se colocar num silêncio interno para escutar o que Deus tem para nos dizer.

 

Essa réplica pode chegar naquele momento ou, então, depois, por meio de imagens ou palavras que vem à nossa mente. A resposta também pode vir através de sonhos, intuições, frases lidas em algum livro, sinais simbólicos, sincronicidades e de muitas outras maneiras. Quem vive mergulhado nesse encontro diário espiritual revela que geralmente Deus nos fala de uma forma oblíqua, não direta. Mas para aprender a decifrar essa linguagem e não se enganar, é aconselhável manter uma rotina de encontros, momentos de silêncio e práticas religiosas. “A oração nos deixa ser encontrados por Deus, a fim de que Ele possa nos falar – e, obviamente, a fim de que possamos falar à Ele, cada um contando ao outro aquilo que lhe é mais importante, e dizendo ao outro, por meio de por trás de cada palavra, Eu te amo”, escreveu o monge cisterciense Dom Bernardo Bonowitz no livro Buscando Verdadeiramente a Deus.

 

Dom Bernardo acredita que manter o mesmo tempo e horário para essa conversa diária com Deus pode nos ajudar na intimidade, profundidade e fidelidade desse relacionamento de amor. “Como podemos aprender a escutar Deus? Basicamente a resposta é: pela prática, pela perseverança e… pelo desejo. Quem quer que queira ser encontrado por Deus, será encontrado; quem quer realmente escutar a voz Dele, também desenvolverá a capacidade de escutá-la, seja por meio de palavras, ou sem elas”, garante. Tudo é possível se esse encontro for ardentemente desejado com todo coração e se for constante, diário. “Não só para pedir algo para si, ou pelos outros, mas simplesmente por ansiar “ser abrasado por Deus”, nas palavras de outro monge, o beneditino Dom Laurence Freeman, presidente do Movimento Mundial de Meditação Cristã. “Ansiar até chegar ao ponto de sentir-se bronzeado por essa Luz Divina cheia de amor”, diz Dom Laurence, que, como Dom Bernardo, também dirige retiros anuais muito procurados no Brasil.

 

Nesse tipo de oração pessoal e íntima, “tenho de estar a sós, tenho de encontrar a paz, tenho de afrouxar os nós dos sapatos, da gravata, dos desejos, dos receios, tenho de ter mãos vazias, ter a alma e o corpo nus”, como canta Gilberto Gil na música Se eu quiser falar com Deus. É necessário se colocar nessa condição de abertura tranquila, em silêncio, num lugar reservado. Com o tempo, também eu posso aprender a mergulhar em mim mesmo, ir até o fundo do poço dos meus medos, dos meus erros. E, nesse instante, reconhecer minha humanidade, meus limites, minhas imperfeições, minha sombra. Talvez em determinado momento eu vá encontrar “a noite escura da alma”, na expressão poética do místico espanhol San Juan de la Cruz. Tenho de me ver tristonho/ tenho de me achar medonho/ E apesar de um mal tamanho/ Alegrar meu coração, continua Gil na sua canção. Deus vai tocar meu coração, e eu vou abri-lo do jeito que ele é, com todas suas imperfeições e tristezas. Mesmo assim, a descoberta da Presença Divina dentro dele vai me fazer feliz, e me deixar cheio de alegria, canta Gilbero Gil.

 

Junto a escuta pessoal, você poderá acrescentar um outro tipo de oração, muito amada pela comunidade monástica cristã: a Oração do Coração.

 

O contato com o coração

“Senhor Jesus Cristo, filho de Deus, tende piedade de mim, pecador”, repetem os monges do Monte Athos, na Grécia. Essa simples frase é chamada de Oração do Coração e é uma das traduções da expressão em latim Kyrie Eleyson, entoada continuamente em seus rosários. Nesse modelo de oração, se repete apenas poucas palavras, como num mantra. Elas podem ser Kyrie Eleyson, ou então o nome de Jesus (Yeshua) em aramaico, ou ainda expressões como Maranatha, que quer dizer “Vinde, Senhor”, ou mesmo apenas a repetição de Amor ou Deus. Escolho uma delas e a repito ao desfiar o rosário com a atenção voltada para o centro do peito, nosso coração espiritual. “Por meio da suave repetição dessas palavras, a mente se aquieta, o coração se focaliza, o desejo (de encontrar Deus) é intensificado, a imaginação se acalma e tudo em nós se torna “pronto” para escutá-Lo”, afirma Dom Bernardo Bonowitz em seu livro.

 

“A atenção ao coração é o objetivo fundamental do trabalho espiritual. Tudo o mais na nossa vida interior deve se subordinar a esse objetivo”, nos diz o monge hesicasta São Simeão, o novo teólogo na Filocalia. “Mantenha vossa atenção ali (no coração), tentando por todos os meios possíveis encontrar o lugar onde o coração está, a fim de que, tendo-o encontrado, a vossa mente possa constatentemente permanecer ali. Procurando com atenção por esse lugar, a mente será capaz de encontrá-lo e reconhecê-lo”, insiste São Simeão. No livro Cristianismo Perdido, Jacob Needleman explica porque é tão fundamental rezar com a atenção voltada para dentro do meio do peito, o centro do ser e também o nosso coração espiritual. “Eu não conheço o lugar do coração. E é isso o que devo descobrir. E conhecer o lugar onde está o coração não é algo que eu possa fingir que eu saiba. Mas que esse pormenor quase nunca é considerado em toda a literatura do misticismo cristão. Erroneamente nós supomos que podemos encontrar facilmente o lugar do coração, ou que já estamos nele”, escreveu Jacob Neddleman.

 

Esse detalhe é importantíssimo, porque a possibilidade de encontro com o plano divino irá passar primeiramente pelo coração. Por isso é bom que toda prática de oração leve constantemente a atenção para o meio do peito, até você sentir que está verdadeiramente em contato com o coração espiritual.   

 

Na Oração do Coração, eu reconheço que eu faço erros, eu reconheço que eu não sou perfeito, e eu peço pela compaixão divina. Numa época de egos gigantescos que julgam estar sempre certos, eu me coloco com humildade e admito que muitas vezes eu erro, sim, que eu sou pecador  e que me arrependo desses erros quando sou iluminado pela luz da consciência. Isso não é como uma admissão dolorosa e pesada de culpa, mas sim um arrependimento sincero fundado na compreensão da dimensão do meu erro e no desejo de me transformar para melhor. Pecar é simplemente errar na pontaria e perder o alvo. Só quando eu reconheço isso é que eu posso me arrepender humildemente, sinceramente. Dizem os místicos que é somente nessa posição de nulidade, quando eu admito que não eu sou nada nem ninguém especial, quando eu perco os contornos rígidos do meu próprio orgulho, é que possível me unir verdeiramente a Deus e dizer Eu e meu Pai somos Um, como disse Jesus Cristo.

 

Mas também há um outro significado na expressão Kyrie Eleyson usada na Oração do Coração, segundo o monge ortodoxo francês Jean-Yves Leloup. Esse outro sentido fala de um reconhecimento profundo da existência de Deus na minha vida. É o mesmo reconhecimento do apóstolo Tomé ao ver e tocar as chagas de Cristo depois de sua morte. “Meu Senhor, e meu Deus”, diz o apóstolo incrédulo ao cair de joelhos diante da visão luminosa de Jesus ressucitado. Como Tomé, eu também não sei reconhecer o poder da Luz Divina na minha existência. Mas durante a Oração do Coração, eu posso fazer isso com alegria ao me colocar maravilhado diante dessa Presença de Amor e Luz.

 

Eu posso escolher a Oração do Coração como uma das minhas práticas diárias, ou mesmo durante uma fase da minha vida. Esse tipo de oração me ajudará a reconhecer minha humanidade, erros e limites. Também irá me estimular a me colocar com júbilo e alegria diante de Deus, porque eu aprenderei a ter confiança na misericórdia divina. Durante a repetição, eu me sentirei perdoado e também profundamente abençoado.

 

Leia mais sobre sobre essa oração em livros como Relatos de um peregrino russoEscritos sobre o Hesicasmo e A Nuvem do Não-Saber. Depois de rezar a Oração do Coração por um período de tempo, eu posso adotar outras formas de oração quando precisar. Muitas delas estão descritas nas obras do monge francês Jean-Yves Leloup sobre os antigos padres do deserto, os primeiros monges cristãos, e em livros como Dá-me um Coração Aberto, do monge alemão Anselm Grün.

 

A força da oração feita em grupo

Rezar o rosário é o que Maria, a Mãe de Jesus, sempre pede nas suas aparições registradas no mundo todo. “A mensagem principal que Nossa Senhora dá ao mundo nesse momento é a paz. A paz de que fala Nossa Senhora é fruto que vem como consequência de ‘um encontro com Deus’. Ela diz: ‘Quem encontra com Deus acha uma alegria, da qual nasce a paz”, escreveu o padre Tomislav Vlasic no livro Abri seus corações a Maria, Rainha da Paz e que acompanhou durante anos os videntes de Nossa Senhora em Medjugorjie, na Bósnia-Herzegovina. Esse encontro espiritual pode acontecer durante a recitação do rosário. É o que milhões de pessoas fazem hoje no mundo a pedido de Maria.

 

O advogado e vidente místico Pedro Siqueira, por exemplo, ao comandar a recitação do rosário para grupos enormes (e poderosos) de oração, intui frases durante sua recitação que afirma serem inspiradas pelo Espírito Santo. Também ora por curas e estimula o perdão aos inimigos antes de rezar, como é aconselhado nos Evangelhos. Pede sempre a proteção do anjo da guarda ou de São Miguel durante a recitação, e ensina a rezar o terço com devoção. “Como na meditação e recitação de mantras, a repetição das orações do rosário nos leva a uma condição diferenciada de consciência. As ondas cerebrais mudam. Mas acontece muito mais do que isso: estabelece-se a possiblidade de ligação com outro plano espiritual, com outra realidade”, diz com convicção.

 

Clark Strand, que já foi monge zen-budista americano e é o autor do livro Como acreditar em Deus, hoje comanda novenas de oração de 54 dias no Facebook no grupo Way of the Rose (que significa O Caminho da Rosa, já que rosário vem da palavra rosa). As primeiras semanas são dedicadas ao pedido e as últimas em agradecimento pela realização dele, como se já tivesse sido realizado. É uma maneira antiga de rezar, revelada no século XIX para a freira francesa Catherine Labouré durante uma aparição de Maria. Muitas pessoas acompanham essa recitação do rosário com devoção.

 

Para São Serafim de Sarov, santo da Igreja Ortodoxa Russa, a oração, junto com jejuns e sacrifícios, não é um alvo em si mas o meio de receber a Luz do Espírito Santo dentro de nós.

 

Mas por que rezar muito?

O que realmente nos acontece durante a oração? São Serafim de Sarov, um místico russo do século XVII, respondeu de forma surpreendente a essa pergunta intrigante. Ele afirma que as orações, jejuns e penitências são apenas um meio hábil para cumprir, segundo ele, o verdadeiro objetivo da vida cristã: inundar nosso corpo físico, e também nossa alma, com o Espírito Santo, a Terceira Pessoa de Deus, que é Luz, Conforto e Amor, de acordo com a tradição cristã. “A oração, o jejum, as vigílias e outras atividades, por melhores que possam parecer em si mesmas, não constituem o objetivo da vida cristã, mesmo ajudando a chegar até à ele” diz São Serafim.

 

“O verdadeiro objetivo da vida cristã consiste na ‘aquisição” do Espírito Santo”, afirma. E São Serafim pede humildemente permissão ao Espírito de Deus que Ele mostre a Motovilov, um intelectual e filósofo russo que vem visitá-lo, como a oração e as práticas religiosas podem transfigurar o corpo material em Luz. E sendo atendido em suas preces, o monge se mostra à Motovilov em sua radiância luminosa, invisível aos olhos comuns. “Eu não posso olhar para você, meu Pai, porque vosso olhos projetam clarões; o vosso rosto se tornou mais brilhante que o sol e eu sinto  dor nos olhos ao olhar para vós”, diz o intelectual inteiramente maravilhado com experiência dele. E São Serafim o estimula a olhar para ele de frente. “Encorajado com essas palavras, eu olhei, e fui tomado de um terror piedoso. Vocês imaginem a face do homem que fala com vocês no meio do sol, no brilho dos raios escaldantes dele em pleno meio-dia; vocês podem ver o movimento dos seus lábios, olhar para a expressão mutante dos seus olhos, vocês podem ouvir suas voz e sentir suas mãos pousarem sobre os ombros de vocês, mas não veem nem suas mãos, nem o corpo do seu interlocutor – nada além da luz resplandescente que se propaga longe, a alguns metros ao redor, iluminando com seu brilho o prado coberto de neve e os flocos brancos que não param de cair”, escreveu Motovilov no seu livro Colóquios de São Serafim, cujos trechos podem ser baixados gratuitamente na internet.

 

O monge russo pergunta então o que ele sente, e Motovilov responde: um bem-estar infinito, uma paz infinita, uma alegria infinita. E São Serafim diz à ele: “Quando o Espírito de Deus desce sobre o ser humano e o envolve na plenitude de sua presença, então a alma transborda de uma alegria indizível, pois o Espírito Santo cumula de alegria todas as coisas que Ele toca. Estas são as primícias da paz e da alegria celestes aqui na Terra”, diz o monge. Uma experiência, para São Serafim, “sobrenaturalmente natural”. E que é possível de acontecer com qualquer um que mergulhe profundamente no mundo das orações. 

 

(versão editada e ampliada de artigo publicado originalmente na revista Vida Simples)

 

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