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Sherazade e os anjos cármicos

Permitam-me abrir uma exceção. Gostaria de reproduzir aqui a abertura do artigo principal da revista Vida Simples que está nas bancas. A reportagem está no contexto da pauta encomendada, que é a de como aprender a fazer boas escolhas, mas o texto inicial fala igualmente de como aprendi a ser uma viajante. A vida não é nada mais do que uma viagem, como diz Bob Dylan, uma jornada existencial em que nos deparamos com novas opções a todo momento.

 

Para poder fazer isso, o viajante tem de desenvolver um raciocínio veloz e preciso, pois muitas vezes a vida dele, conforto ou qualidade de sobrevivência dependem disso. E eu conto no texto como me dei conta pela primeira vez da importância das boas escolhas durante uma viagem. Faço esse relato de uma forma afetiva, como se eu estivesse diante de uma lareira a contar uma história, com ouvintes enrolados em cobertores macios numa noite de inverno.

 

 E já que todos me acompanham nesse clima tão gostoso, vou contar em poucas linhas o que me levou a escrever essa abertura de texto dessa maneira.  

 

Nasci uma storyteller, uma contadora de histórias. Sou herdeira da princesa Sherazade, cuja vida dependia da qualidade dos relatos feitos a cada dia ao sultão. Seja como roteirista (parte da minha vida profissional trabalhei como roteirista da Fundação Roberto Marinho) ou jornalista, meu imenso prazer é ouvir, e claro, contar histórias. E elas tem de ser boas mesmo, pois minha sobrevivência também depende disso. 

 

Se outras vidas existirem, certamente devo ter feito isso muitas e muitas vezes. Talvez como escriba no Egito, dervixe diante da Porta Azul  de Samarcanda, griot de uma aldeia africana ou uma anfitriã coquete em saraus literários de Paris. E se transmito prazer e encantamento no que conto, é porque encantada pela vida sempre estou. Como é dito na parábola de Buda, saboreio intensamente os morangos silvestres que nascem à beira do precipício, sem esquecer que um ratinho rói a corda da minha existência e o tigre da morte me espera lá embaixo com a boca escancarada. Mas enquanto isso não acontece dentro do espaço e do tempo, que deliciosa alegria…

 

Viajantes, no geral, são bons contadores de histórias. Porque a vida parece se desdobrar em possibilidades inesperadas enquanto viajamos. É como se os anjos cármicos resolvessem assumir de vez o controle de nossa existência e apresentar situações que nunca pensaríamos que pudessem acontecer. E anjos, cá entre nós, são preciosos roteiristas. Os enredo das histórias que ouvimos comumente na vida são arranjos de marchas e contramarchas, picos de extremo suspense, desfechos inesperados, reviravoltas completas. São seres inspirados.

 

E, quando um viajante conta uma dessas histórias orquestradas pelos anjos, ouvidos atentos se abrem. Claro, esses relatos poderiam acontecer com qualquer um de nós nas mesmas circunstâncias. Podemos aprender sempre com o que é falado. Mas não é nem mesmo a vontade de conhecer mais coisas e lugares que nos move. Desconfio, e tenho quase certeza, que o nosso maior interesse é saber como tudo vai acabar. Até aceitamos nos entreter pelo que acontece no meio do percurso, mas somos seres siderados pelo fim. Não sossegamos enquanto não conhecemos o desfecho.

 

Pensando bem, nem só os anjos são bons contadores de histórias. Eles devem ter aprendido com Deus. O maior deles. E a Fonte Suprema, no seu lado humano, também deve ser fascinada pela história que criou e conta a cada dia. E o Criador ainda nos dá a liberdade de escolher o rumo dela. Por isso, escrevi como se pode viver sem medo e com tranquilidade diante das muitas alternativas que nos oferecem uma viagem. É claro, depois do mais absoluto pânico inicial. Como diz meu amigo Ricardo Hida, um grande viajante, depois do “momento pânico” que aconteceu diante daquilo que nos pegou inteiramente de surpresa. 

 

Bom, agora você, que me acompanhou até agora, vai saber como fiz a abertura do texto da Vida Simples deste mês. E como se deu esse primeiro aprendizado, que me preparou para viajar, e morar, em muitos países. 

 

Aconteceu quando eu tinha 13 anos. Era a primeira vez que eu pisava em Nova Iorque e estava doida para conhecer a cidade. Após o café da manhã no hotel, meu pai, um experiente viajante, me deu um mapa de lá, explicou como eu poderia me achar nas ruas identificadas por números, assinalou os pontos turísticos que poderiam interessar a uma menina ajuizada como eu (a Biblioteca Pública, o Museu de Arte Moderna, o Central Park…) e combinou de nos encontrarmos ali mesmo no saguão de entrada quatro horas mais tarde. Olhou bem dentro dos meus olhos e pediu para eu não me esquecer dos seus dois mantras preferidos: “o mundo é meu quintal” e “sempre há uma solução para tudo”. Dessa maneira, assim como nas iniciações indígenas, meu pai me colocou pela primeira vez diante da multiplicidade de escolhas da vida adulta. Gelei. Não imaginava ter de circular sozinha por aquela metrópole desconhecida que me oferecia tantas alternativas e riscos. Sem me dar tempo para reagir, ele se despediu. Ainda trêmula e hesitante, procurei a atração mais próxima e entrei no MOMA, o Museu de Arte Moderna de Nova Iorque. Parei estatelada diante da força e beleza de Guernica, a tela de Picasso em tons de cinza, preto e branco que imortalizou os horrores de um ataque aéreo durante a guerra civil espanhola. Olhei os personagens um a um, e me identifiquei imediatamente com um cavalo em estado de choque diante do barulho das bombas. Naquele momento, ele era eu: totalmente em pânico. Mas aos poucos, entre os móbiles flutuantes de Calder e as cores vibrantes dos quadros de Mondrian, comecei a relaxar. Mais calma, me lembro de ter escolhido conscientemente que daquele momento em diante eu não iria ter mais medo. Tudo continuava igual, mas eu tinha conseguido virar o dial. Respirei fundo, e tentei encontrar coragem e força no meu coração para seguir adiante para explorar os outros caminhos da cidade. Me espreguicei sob o sol num banco do Central Park. Entrei na Igreja de St. Patrick e rezei. Comi a mais saborosa torta de cerejas da minha vida. Não tive receio de pedir informações ou de trocar algumas frases com alguém. Como me senti viva, confiante e feliz! O que eu não sabia até aquele momento era que, de longe, meu pai me acompanhava a cada passo”.

 

O próximo comentário será sobre a abertura de um texto sobre o despertar da compaixão, um tema muito atual. e necessário nesse momento. 

 

Mas essa é uma história que fica para uma outra vez. 

 

 

 

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Ilustração Scherazade e os anjos do deserto.
Fonte: http://literaturapersa.blogspot.com.br/2015_02_01_archive.html

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