Felícia, o pequeno pássaro que me acompanha

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Felícia, o pequeno pássaro que me acompanha

julho 25, 2016
Liane Alves
2 comments

Eu não mudei sozinha para Campos de Jordão. Junto comigo e meu marido, veio Felícia. Ela me inspira, ela me segreda, ela está presente no vento e nas araucárias. Eu sou capaz até de sentir seu perfume, embora nunca a tenha conhecido. Percebo a menina que usava cerejas como brincos debaixo do seu chapéu de palha entre os cedrinhos do meu jardim. Esbarro nas praças da cidade com a mulher que gotejava suor ao trabalhar em cima de suas esculturas até de madrugada. A presença dela é contínua. Tenho cá para mim que Felícia Leirner se tornou anjo.

Por isso, eu não estranhei quando descobri, por acaso, que o dia em que iniciamos nossas atividades espirituais aqui, com uma meditação ao pôr do sol no museu que abriga as esculturas dela, era o dia do seu aniversário. Ela faria 112 anos no dia 16 de julho. Era um presente dela para nós, e de nós para ela.  

E aqui abro um parêntese que nos auxilia na compreensão da visão mística de Felícia. Embora judia de origem, ela era ecumênica na sua busca pela transcendência. Esculpiu um São Francisco de Assis, como também de suas mãos saiu um magnífico anjo. Um incidente ocorrido quando seus filhos eram pequenos talvez possa nos ajudar a decifrar um pouco de sua espiritualidade abrangente e universal. Nessa época, Felícia adoeceu gravemente e, durante uma cirurgia, teve uma experiência de quase morte. Viu seres longilíneos que lhe disseram que ainda não era o seu momento de morrer, porque ela ainda tinha uma tarefa espiritual a cumprir por aqui nesse plano. Durante toda sua vida, a escultora se questionou se a estaria cumprindo. E essa questão também está muito presente em nossos corações. Qual é nossa tarefa espiritual aqui? Como ela se desenrola em nossas existências? 

A conexão com Felícia também acontece por outros motivos. A neta de Felícia, Sheila Leirner, é também muito próxima a mim. Trabalhamos juntas como críticas no jornal O Estado de São Paulo. Tínhamos vinte e poucos anos numa época em que a maioria dos outros jornalistas da editoria de artes tinha cinquenta. A cumplicidade foi imediata. Foi um período muito rico de intensas reflexões sobre a arte no Brasil, em conjunto com os críticos de outras áreas. Eu voltava de um doctorat de specialité na Sorbonne IV, acadêmico e tedioso até a asfixia, e estava fascinada pelas possibilidades de abertura e criatividade do jornal. E escrever sobre televisão de maneira mais conceitual era inédito no Brasil até aquele momento. Além disso, os editores, Cremilda Medina e Luiz Carlos Carvesan, nos davam total liberdade. Foram oito anos muito produtivos.

Acredito que tenha sido Sheila quem me falou pela primeira vez de Felícia, sua avó materna. E me apaixonei. Não só por suas esculturas e arte, mas também pela vida e personalidade dela: a menina judia que veio da Polônia mas que nunca se deixou abater pela guerra; a moça que teve coragem de enfrentar o grande mestre Brecheret e pedir para ser aluna, quando já tinha 44 anos de idade e na conservadora década de 40; a escultora que aprendeu muito sozinha, com seu notável conhecimento sobre os artistas plásticos do passado; a mulher enamorada por Isai, seu marido, e a artista que um dia veio morar em Campos do Jordão. Assim como nós, agora.

 

Pouco a pouco, as esculturas se tornam cada vez mais abstratas. Ao fundo , entre araucárias, as formas humanas longilíneas.

Meu coração se emociona ao ler o que ela escrevia na época em que morou aqui. A antiga araucária do lado de sua casa batizada de Profeta Isaías. As colinas mansas, o frio, a neblina, o trabalho, a lareira. Nesse cenário, nasciam suas obras de formas semiabstratas que retratam bichos, habitações, santos, famílias, pássaros e anjos. As mais pungentes, para mim, são exatamente as últimas: molduras brancas que apenas enquadram a paisagem de araucárias. Dessa maneira, a escultora Felícia, com sua arte mística e livre, se rende definitivamente ao seu grande amor, a natureza.

Felícia foi mãe de Giselda, artista plástica e escritora de talento, e de Nelson Leirner, um dos expoentes da arte nacional. E Giselda é mãe de Sheila, a neta, conceituada crítica de arte e curadora de duas das mais revolucionárias edições da Bienal Internacional de São Paulo. Bons frutos, esses.

Sheila vive há muitos anos em Paris, onde também morei,  mas pouco nos vemos hoje em dia. Só conheci seu marido Patrick há dois anos, e temos diálogos carinhosos pelo Facebook para matar a saudade. Porém, o mesmo fio cristalino de amor e cumplicidade ainda nos liga. Quando nos falamos, parece que nos encontramos na véspera. Me sinto à vontade com ela, Giselda e Patrick, como amigos que compartilham uma fina sintonia.

Hoje, minha vida e a de Felícia se entrelaçam aqui em Campos do Jordão. A irmã de um dos ajudante dela, Germano, que fazia o trabalho pesado da montagem das esculturas em ferro ou concreto armado, é minha querida diarista Ana Ferreira. O filho do seu caseiro trabalha com meu marido, assim como um dos garotos que jogavam futebol na mesma rua dela e que aconheciam. Nesse sentido, Campos é quase incestuosa. Mas o que mais me faz aproximar de Felícia ainda é o coração. Temos a mesma inclinação mística, o amor pela casa e pela natureza.

Deixo aqui um pequeno trecho, quase um koan, escrito pela escultora e recolhido no livro Felícia Leirner, textos poéticos e aforismos, de J. Guinsbourg e Sergio Kon (editora Perspectiva). Ele dá a dimensão da indagação existencial desse pequeno pássaro que viveu aqui entre as montanhas e que hoje acompanha nas minhas reflexões. Diz ele:

Comprei cerejas no Brasil, olhei: que lindas e gostosas! Será que são as mesmas que comi em Varsóvia há 60 anos? Lembro-me ainda que as pendurava nas orelhas como brincos e enfeitava com elas meu chapéu de palha. Agora, o que mudou? Foram as cerejas? Não está aqui meu chapéu de palha, nem as orelhas pequenas cobertas de cachos loiros. Quem é que está agora comendo cerejas no Brasil?

 O museu ao ar livre de Felícia Leirner, hoje

Atualmente o Museu Felícia Leirner apresenta inúmeras atividades. Antes quase abandonado, agora se abre cada vez mais para a população local e visitantes. Por meio da ACAM Portinari, uma organização social de cultura especializada em gestão de museus, e sob a gerência criativa de Marina Falsetti Silveira, a instituição foi recuperada e está em ótimas condições, assim como o auditório Cláudio Santoro, que fica na mesma área, e onde acontece o Festival de Inverno de Música Clássica De Campos de Jordão, considerado o maior da América Latina. 

Em breve lançaremos um post só sobre o Museu Felícia Leirner. Para você não perder o melhor que ele pode oferecer durante sua estadia em Campos do Jordão.

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Créditos da foto: Fonte: Morais, Frederico. “Felícia Leirner: A arte como missão.” Editora Hamburg, 1991.

 

2 Comments

  1. sylvialoeb julho 25, 2016at 3:53 pm

    Que depoimento maravilhoso! Só uma artista de alma para reconhecer e acolher outra. Parabéns, muito lindo. Sylvia

  2. marisilda nietto julho 25, 2016at 3:53 pm

    Muito obrigada , eu adoro ficar com conhecimento rico, você é muito importante, para o meu pequeno conhecimento, beijos.

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